sábado, 14 de julho de 2012

Sem saúde

Costumo pensar que uma frase, mesmo solta no vento e, a princípio, desprovida de qualquer significado maior, traz consigo marcas identitárias, um passado repleto de histórias. E esse passado, esse contexto, nos diz muito. No caso da música Sem Saúde, de Gabriel (Gabrielito!), somos nós que ficamos sem palavras ( e isso nos diz muito). Cada fonema trás consigo tanto significado que eu recomendo que vocês apenas escutem a música, leiam a letra e deixem as sinapses fluírem e confluírem. "Me cansei de lero lero!", na verdade, quando se tem fome ou outra necessidade vital não se quer saber sobre a conjuntura das leis constitucionais ou da equidade do Sistema de Saúde, qualquer pedra nas mãos se torna arma. 

Então, boa sorte, boa vida, bons sentidos. 



SEM SAÚDE
(Gabriel, O Pensador) 

Pelo amor de Deus alguém me ajude!
Eu já paguei o meu plano de saúde
mas agora ninguém quer me aceitar
E eu tô com dô, dotô, num sei no que vai dá!
Emergência! Eu tô passando mal
Vô morrer aqui na porta do hospital
Era mais fácil eu ter ido
direto pro Instituto Médico Legal
Porque isso aqui tá deprimente, doutor
Essa fila tá um caso sério
Já tem doente desistindo de ser atendido
e pedindo carona pro cemitério
E aí, doutor? Vê se dá um jeito!
Se é pra nós morrê nós qué morrê direito
Me arranja aí um leito que eu num peço mas nada
Mas eu num sou cachoro pra morrer na calçada
Eu tô cansado de bancar o otário
Eu exijo pelo menos um veterinário
Me cansei de lero lero
Dá licença mas eu vou sair do sério
Quero mais saúde
Me cansei de escutar...
"Doutor, por favor, olha o meu neném!
Olha doutor, ele num tá passando bem!
Fala, doutor! O que é que ele tem!?"
- A consulta custa cem.
"Ai, meu Deus, eu tô sem dinheiro"
- Eu também! Eu estudei a vida inteira pra ser doutor
Mas ganho menos que um camelô
Na minha mesa é só arroz e feijão
Só vejo carne na mesa de operação
Então eu fico 24 horas de plantão
pra aumentar o ganha pão
Uma vez, depois de um mês sem dormir,
fui fazer uma cirurgia
E só depois que eu enfiei o bisturi
eu percebi que eu esqueci da anestesia
O paciente tinha pedra nos rins
E agora tá em coma profundo
A família botou a culpa em mim
E eu fiquei com aquela cara de bunda
Mas esse caso não vai dar em nada
Porque a arma do crime nunca foi encontrada
O bisturi eu escondi muito bem:
Esqueci na barriga de alguém
Me cansei de lero lero
Dá licença mas eu vou sair do sério
Quero mais saúde
Me cansei de escutar...
Socorro! Enfermeira! Urgente!
Tem uma grávida parindo aqui na frente!
...Ninguém me deu ouvidos
E eu dei um nó no umbigo do recém-nacido
Mas o berçario tá cheio então eu fico
com o bebê no meu colo aqui no meio da rua
E lá dentro o doutor tá botando o paciente no colo:
- "Por favor, fique nua!"
"Quê isso doutor?! Tem certeza?"
- "Confie em mim. É terapia chinesa. Tira a roupa!"
"Mas é só dor de dente"
- "Então abre a boca! (Ahhh) Beleza!"
"Ai, doutor, tá doendo!"
- "É isso mesmo, o que arde cura"
"Não! Pára! Não! Pára doutor! Não pára, doutor! Ai... Que loucura!!!)
- "Pronto, passou, tudo bem.
Volta na semana que vem!"
Ela vai voltar pra procurar o doutor
Essa vai voltar, pode escrever!
Mas só daqui a nove meses,
com um filho da consulta na barriga querendo nascer
Me cansei de lero lero
Dá licença mas eu vou sair do sério
Quero mais saúde
Me cansei de escutar...
Que calamidade!
Dos bebês que nascem virados pra lua
e conseguem um lugar na maternidade
A infecção hospitalar mata mais da metade
E os que sobrevivem e não são sequestrados
devem ser tratados com todo o cuidado
Porque se os pais não tem dinheiro pra pagar hospital
uma simples diarreia pode ser fatal
- "Come tudo, meu filho, pra ficar bem forte"
"Ah, mãe! Num aguento mais farinha!"
- "Mas o quê que tu quer? Se eu num tenho nem talher?"
"Pô, faz um prato diferente, maínha!"
- "Eu ia fazer a tal da 'autopsia'
mas eu não tenho faca de cozinha!!"
Tá muito sinistro! Alô, prefeito, governador, presidente, ministro, traficante, Jesus Cristo, sei lá...
Alguma autoridade tem que se manifestar!
Assim num dá! Onde é que eu vou parar?
Numa clínica pra idosos? Ou debaixo do chão?
E se eu ficar doente? Quem vem me buscar?
A ambulância ou o rabecão?
Eu Tô sem segurança, sem transporte, sem trabalho, sem lazer
Eu num tenho educação, mas saúde eu quero ter
Já paguei minha promessa, não sei o que fazer!
Já paguei os meus impostos, não sei pra quê?
Eles sempre dão a mesma desculpa esfarrapada:
"A saúde pública está sem verba"
E eu num tenho condições de correr pra privada
Eu já tô na merda.



Nenhum comentário:

Postar um comentário