Grácia Maria de Miranda
Gondim Maurício Monken
Ao se buscar definir a ‘territorialização em saúde’, precede explicitar a historicidade dos conceitos de território e territorialidade, suas significações e as formas de apropriação no campo da saúde pública e da saúde coletiva. Pretende-se com isso, situar os diferentes usos do termo territorialização (teórico, prático e metodológico) pelo setor saúde, destacando sua importância no cenário atual da reorganização da atenção, da rede de serviços e das práticas sanitárias locais.
O termo território origina-se do latim territorium, que deriva de terra e que nos tratados de agrimensura aparece com o significado de ‘pedaço de terra apropriada’. Em uma acepção mais antiga pode significar uma porção delimitada da superfície terrestre. Nasce com dupla conotação, material e simbólica, dado que etimologicamente aparece muito próximo de terra-territorium quanto de terreo-territor (terror, aterrorizar). Tem relação com dominação (jurídico-política) da terra e com a inspiração do medo, do terror – em especial para aqueles que, subjugados à dominação, tornam-se alijados da terra ou são impedidos de entrar no ‘territorium’. Por extensão, pode-se também dizer que, para aqueles que têm o privilégio de usufruí-lo, o território inspira a identificação (positiva) e a efetiva ‘apropriação’ (Haesbaert, 1997, 2005; Souza & Pedon, 2007).
A concepção de território que mais atende às necessidades de análise das ciências sociais e humanas é a sóciopolítica. Só é possível falar em demarcação ou delimitação em contextos nos quais exista uma pluralidade de agentes (Nunes, 2006). Portanto, a noção de território é decorrência da vida em sociedade, ou ainda, “os territórios [...] são no fundo, antes ralações sociais projetadas no espaço, que espaços concretos” (Souza, 1995, p.87).
Em uma sociedade política os indivíduos se articulam por meio de relações reguladas e possui princípios mínimos de organização. Essa organização só se viabiliza quando existe um poder habilitado a coordenar todos aqueles que se encontram em um determinado espaço. Por isso, quando se analisam os coletivos humanos ao longo da história, só se destaca a noção de território a partir das primeiras sociedades políticas. Com isso, corrobora-se a hipótese de que um elemento indissociável da noção de poder é o território, dado que não há organização sem poder (Nunes, 2006).
Raffestin (1993) entende o território como todo e qualquer espaço caracterizado pela presença de um poder, ou ainda, “um espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder” (p. 54). E ainda, o poder “surge por ocasião da relação”, e “toda relação é ponto de surgimento do poder” (p.54). Quando coexistem em um mesmo espaço várias relações de poder dá-se o nome de ‘territorialidades’, de modo que uma área que abriga várias territorialidades pode ser considerada vários territórios.
A territorialidade para Robert Sack (1986) é uma estratégia dos indivíduos ou grupo social para influenciar ou controlar pessoas, recursos, fenômenos e relações, delimitando e efetivando o controle sobre uma área. A territorialidade resulta das relações políticas, econômicas e culturais, e assume diferentes configurações, criando heterogeneidades espacial, paisagística e cultural - é uma expressão geográfica do exercício do poder em uma determinada área e esta área é o território.
O território configura-se no espaço, a partir de uma ação conduzida por um ator sintagmático - aquele que realiza um programa, em qualquer nível da realidade. Ao se apropriar de um espaço, de forma concreta ou abstrata, “[...] o ator ‘territorializa’ o espaço” (Raffestin, 1993, p.143). Significa que o território materializa as articulações estruturais e conjunturais a que os indivíduos ou os grupos sociais estão submetidos num determinado tempo histórico, tornando-se intimamente correlacionado ao contexto e ao modo de produção vigentes. esse aspecto processual de formação do territórioconstituia ‘territorialização’ (Gil, 2004).
O processo de territorialização pode ser entendido como um movimento historicamente determinado pela expansão do modo de produção capitalista e seus aspectos culturais. Dessa forma, caracteriza-se como um dos produtos socioespaciais das contradições sociais sob a tríade economia, política e cultura (EPC), que determina as diferentes territorialidades no tempo e no espaço - as desterritorialidades e as re territorialidades. Por isso, a perda ou a constituição dos territórios nasce no interior da própria territorialização e do próprio território. Ou seja, os territórios encontram-se em permanente movimento de construção, desconstrução e re construção (Saquet, 2003).
A constituição dos territórios na contemporaneidade se expressa segundo Santos (1996), com base em dois movimentos: das horizontalidades e das verticalidades. As horizontalidades serão os domínios de contigüidades, constituídos por uma continuidade territorial, enquanto as verticalidades seriam formadas por pontos distantes uns dos outros, resultado de uma interdependência hierárquica dos territórios, conseqüente do processo de globalização econômica. As intensas mudanças econômicas e políticas, decorrentes das verticalidades - mundialização do capital e o modelo neoliberal de organização do Estado - trouxeram impactos negativos sem precedentes na organização dos territórios, nas estruturas produtivas e sociais dos países em desenvolvimento, desenhando um cenário de profundas desigualdades sociais, com a exclusão de parcela significativa da população ao direito à vida e à cidade (Tavares & Fiori, 1993; Antunes & Alves, 2004).
No setor saúde os territórios estruturam-se por meio de horizontalidades que se constituem em uma rede de serviços que deve ser ofertada pelo Estado a todo e qualquer cidadão como direito de cidadania. Sua organização e operacionalização no espaço geográfico nacional pautam-se pelo pacto federativo e por instrumentos normativos, que asseguram os princípios e as diretrizes do Sistema de Saúde, definidos pela Constituição Federal de 1988. Não obstante os avanços na saúde nos últimos 20 anos, alicerçados em bases teóricas sólidas da Reforma Sanitária, o setor padece de problemas organizacionais, gerenciais e operacionais, demandando uma nova re organização de seu processo de trabalho e de suas estruturas gerenciais nas três esferas de gestão do sistema, de modo a enfrentar as desigualdades e iniqüidades sociais em saúde, delineadas pela tríade econômico -política globalização, mundialização e neoliberalismo.
No cenário da crise de legitimidade do Estado, o ponto de partida para a re-organização do sistema local de saúde brasileiro foi redesenhar suas bases territoriais para assegurar a universalidade do acesso, a integralidade do cuidado e a eqü idade da atenção. Nesse contexto, a territorialização em saúde se coloca como uma metodologia capaz de operar mudanças no modelo assistencial e nas práticas sanitárias vigentes, desenhando novas configurações loco-regional, baseando-se no reconhecimento e esquadrinhamento do território segundo a lógica das relações entre ambiente, condições de vida, situação de saúde e acesso às ações e serviços de saúde (Teixeira et al., 1998).
Para alguns autores, a territorialização nada mais é do que um processo de “habitar um território” (Kastrup, 2001, p. 215). O ato de habitar traz como resultado a corporificação de sabres e práticas. Para habitar um território é necessário explorá-lo, torná-lo seu, ser sensível às suas questões, ser capaz de movimentar-se por ele com alegria e descoberta, detectando as alterações de paisagem e colocando em relação fluxos diversos - não só cognitivos, não só técnicos, não só racionais - mas políticos, comunicativos, afetivos e interativos no sentido concreto, detectável na realidade. (Ceccim, 2005b). Essa abordagem remete, fundamentalmente, à importância da territorialização para os processos formativos em saúde com foco na aprendizagem significativa e nos contextos de vida do cotidiano.
Entende-se, portanto, que o território da saúde não é só físico ou geográfico: é o trabalho ou a localidade. “O território é de inscrição de sentidos no trabalho, por meio do trabalho, para o trabalho” (Ceccim, 2005a, p.983). Os territórios estruturam habitus, e não são simples e nem dependem de um simples ato de vontade sua transformação que inclui a luta pelo amplo direito à saúde. A tarefa de confrontar a força de captura das racionalidades médico-hegemônica e gerencial hegemônica requer impor a necessidade de singularização da atenção e do cuidado e a convocação permanentemente dos limites dos territórios (Rovere, 2005).
Encontra-se em jogo um processo de territorialização: construção da integralidade; da humanização e da qualidade na atenção e na gestão em saúde; um sistema e serviços capazes de acolher o outro; responsabilidade para com os impactos das práticas adotadas; efetividade dos projetos terapêuticos e afirmação da vida pelo desenvolvimento da autodeterminação dos sujeitos (usuários, população e profissionais de saúde) para levar a vida com saúde. Essa territorialização não se limita à dimensão técnico-científica do diagnóstico e da terapêutica ou do trabalho em saúde, mas se amplia à re orientação de saberes e práticas no campo da saúde, que envolve desterritorializar os atuais saberes hegemônicos e práticas vigentes (Ceccim, 2005a).
A territorialização pode expressar também pactuação no que tange à delimitação de unidades fundamentais de referência, onde devem se estruturar as funções relacionadas ao conjunto da atenção à saúde. Envolve a organização e gestão do sistema, a alocação de recursos e a articulação das bases de oferta de serviços por meio de fluxos de referência intermunicipais. Como processo de delineamento de arranjos espaciais, da interação de atores, organizações e recursos, resulta de um movimento que estabelece as linhas e os vínculos de estruturação do campo relacional subjacente à dinâmica da realidade sanitária do SUS no nível local. Essas diferentes configurações espaciais podem dar origem a diferentes padrões de interdependência entre lugares, atores, instituições, processos e fluxos, preconizados no Pacto de Gestão do SUS (Fleury & Ouverney, 2007).
A saúde pública recorre a territorialização de informações, há alguns anos, como ferramenta para localização de eventos de saúde-doença, de unidades de saúde e demarcação de áreas de atuação. Essa forma restrita de territorialização é vista com algumas restrições, principalmente entre os geógrafos. Alegam ser um equívoco falar em territorialização da saúde, pois seria uma tautologia já que o território usado é algo que se impõe a tudo e a todos, e que todas as coisas estão necessariamente territorializadas. essa crítica é bem- vinda, enriquece o debate teórico e revela os usos limitados da metodologia, constituindo-se apenas como análise de informações geradas pelo setor saúde e simples espacialização e distribuição de doenças, doentes e serviços circunscritos à atuação do Estado (Souza, 2004).
Uma proposta transformadora de saberes e práticas locais concebe a territorialização de forma ampla – um processo de habitar e vivenciar um território; uma técnica e um método de obtenção e análise de informações sobre as condições de vida e saúde de populações; um instrumento para se entender os contextos de uso do território em todos os níveis das atividades humanas (econômicos, sociais, culturais, políticos etc.), viabilizando o “território como uma categoria de análise social” (Souza, 2004, p. 70); um caminho metodológico de aproximação e análise sucessivas da realidade para a produção social da saúde.
Nessa perspectiva, a territorialização se articula fortemente com o planejamento estratégico situacional (PES), e juntos, se constituem como suporte teórico e prático da Vigilância em Saúde. O PES, proposto por Matus (1993), coloca-se no campo da saúde como possibilidade de subsidiar uma prática concreta em qualquer dimensão da realidade social e histórica. Contempla a formulação de políticas, o pensar e agir estratégicos e a programação dentro de um esquema teórico-metodológico de planificação situacional para o desenvolvimento dos Sistemas Locais de Saúde. Tem por base a teoria da produção social, na qual a realidade é indivisível, e tudo o que existe em sociedade é produzido pelo homem. A análise social do território deve contribuir para construir identidades; revelar subjetividades; coletar informações; identificar problemas, necessidades e positividades dos lugares; tomar decisão e definir estratégias de ação nas múltiplas dimensões do processo de saúde-doença-cuidado. Os diagnósticos de condições de vida e situação de saúde devem relacionar-se tecnicamente ao trinômio estratégico ‘informação-decisão-ação’ (Teixeira et al., 1998).
A proposta da territorialização, com toda crítica que ainda perdura nos campos da saúde coletiva e da geografia por sua apropriação tecnicista e prática objetivante, coloca-se como estratégia central para consolidação do SUS, seja para a reorganização do processo de trabalho em saúde, seja para a reconfiguração do Modelo de Atenção. Como método e expressão geográfica de intencionalidades humanas, permite a gestores, instituições, profissionais e usuários do SUS compreender a dinâmica espacial dos lugares e de populações; os múltiplos fluxos que animam os territórios e; as diversas paisagens que emolduram o espaço da vida cotidiana. Sobretudo, pode revelar como os sujeitos (individual e coletivo) produzem e reproduzem socialmente suas condições de existência – o trabalho, a moradia, a alimentação, o lazer, as relações sociais, a saúde e a qualidade de vida, desvelando as desigualdades sociais e as iniqüidades em saúde.